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quinta-feira, 7 de setembro de 2017

Liberty, the god that failed - Resenha da obra de Christopher Ferrara

Por Willian Frota

Se você, como eu, navega pelas águas obscuras das leituras e opiniões proibidas pelo index da esquerda politicamente correta, perceberá que o nome desse livro é uma referência direta a "Democracy: the god that failed", do autor anarco-capitalista Hans Hermann-Hoppe.

Isso não obstante, a proposta de Ferrara no livro não é enfrentar as teses hoppeanas ou o anarco-capitalismo (mencionados apenas de passagem no livro), mas sim fazer uma análise crítica da história norte-americana, a partir da perspectiva do tradicionalismo católico, abordando desde a elaboração da filosofia política iluminista que haveria de informar os Founding Fathers, até suas consequências nos dias atuais, o que explica o subtítulo do livro: "policing the sacred and constructing the myths of the secular state, from Locke to Obama" (veja-se, porém, que o objetivo do autor não é recontar toda a história americana - razão pela qual não encontraremos, aqui, um tratamento pormenorizado dos eventos do século XX, ou mesmo XXI - o objetivo do autor é tratar dos anos da formação do Estados Unidos e de suas consequências teopoliticas para os dias de hoje)

Antes de prosseguir, porém, faça-se uma ressalva: o objetivo do autor não é apenas apresentar uma narrativa, mas refutar e combater narrativas rivais - mais especificamente, as propagadas pela direita americana, desde os libertários até os defensores do agrarianismo sulista. Trata-se, portanto, de algo que será encarado por muitos como um debate interno à direita (por mais que enquadrar o tradicionalismo católico na categoria "direita" seja conceitualmente problemático - pois tal posicionamento é uma negação da modernidade política e, portanto, uma rejeição da própria dicotomia "Esquerda X Direita" - não se pode negar que essa vertente de pensamento tende a ser rotulada pura e simplesmente como "extrema-direita").

Entre os principais momentos e fatos históricos analisados no livro, estão: o surgimento do pensamento revolucionário liberal na Europa iluminista; a Guerra de Independência norte-americana; os governos dos primeiros presidentes; a Guerra de Secessão e o posterior período de apaziguamento nacional ("The Great Never Mind").

Entre as ilustres figuras encontradas (e, na maior parte das vezes, impiedosamente desconstruídas), estão John Locke, os Founding Fathers (como George Washington e Thomas Jefferson), Abraham Lincoln, General Lee, e Jefferson Davis (sobra até para o falecido justice Scalia, cujo nome é sempre precedido do adjetivo ultraconservador - adornado, porém pelas famosas aspas da ironia).

Num levantamento rápido, podemos aqui apontar os principais mitos historiográficos desfeitos pelo livro:
- Contra a noção do liberalismo lockeano como um fruto "moderado" do iluminismo, Ferrara expõe a ruptura radical que o pensamento do filósofo representou diante da cosmovisão greco-católica: com sua filosofia de fundo nominalista, o pensamento lockeano substitui a noção escolástica da polis (uma comunidade que deve se ordenar ao seu fim último, Deus) por uma noção essencialmente agnóstica, na esteira do contratualismo (polis como mero fruto da vontade e da conveniência humana, voltada apenas à auto preservação da sociedade); é aqui que vemos a proposta de um estado laico acima das denominações cristãs como solução para os conflitos religiosos da Europa (como diz Ferrara, um dos muitos capítulos do círculo vicioso liberal - o liberalismo cria um problema, oferece uma "solução" mais liberal, que resulta em mais problemas, com mais "soluções", etc), desembocando na consequência lógica da submissão de Deus ao Estado (veja-se, aliás, que a proposta de "Lei de Tolerância" de Locke concederia liberdade de expressão a todas as religiões, menos a "fanáticos e papistas");

- Contra a ideia de que a Revolução Americana foi uma "revolução conservadora", - propagada especialmente por Russell Kirk e seus seguidores do "Imaginative Conservative" - Ferrara mostra o caráter claramente subversivo da revolução, marcada por manipulação da opinião pública através da imprensa da época (utilizada para propagar factoides sobre a "violência"dos ingleses e sobre o "papismo" do rei George) e por denúncias hipócritas sobre a carga tributária supostamente opressiva da Coroa Britânica; 

- Contra o mito libertário de que os Founding Fathers seriam defensores de um governo limitado, posteriormente hipertrofiado pelas demandas e manipulações da esquerda estatista, o autor mostra como a história da República norte-americana, ainda nos tempos dos primeiros presidentes, já era marcada por um projeto deliberado de aumento do poder Federal (e contra o mito de "jeffersonian limited government", Ferrara mostra como o próprio Jefferson, quando presidente, não hesitava em aumentar o próprio poder - bem como os impostos, elevados muito além do que a Coroa Britânica havia permitido nos tempos das Treze Colônias - não hesitando também em reprimir e executar os cidadãos americanos que se revoltaram com isso; irônico, não?);

- Contra o mito "conservador" dos Founding Fathers como cristãos devotos, Ferrara mostra como Washington, Jefferson e companhia eram, quando muito, deístas unitaristas que rejeitavam Cristo explicitamente (a história de Washington se ajoelhando na neve pra rezar, por exemplo, é um mito; os relatos de que ele se recusava a comungar oi se ajoelhar nas cerimônias religiosas de que participava, porém, são verdadeiros);

- Contra os mitos de Lincoln e do Norte como combatentes pela libertação dos escravos do sul, Ferrara mostra o óbvio: que o presidente moveu a guerra única e somente para preservar o território americano;

- Por outro lado, contra o mito dos sulistas como defensores de um modo de vida cristão e tradicional 

- E contra os revisionismos ainda mais bizarros que tentam pintar a escravidão sulista como "not so bad" - lá vem Ferrara mostrar que a motivação dos líderes sulistas foi somente uma: proteger a escravidão contra o risco de abolição (à época do início das hostilidades, bem abstrato, diga-se de passagem).

Ferrara expõe, ainda, o caráter abertamente antirreligioso da Constituição ("the godless constitution", como chamada pelos militantes protestantes da National Reform Association - que tentaram, em vão, emendar a Constituição com uma menção explícita a Deus e a Jesus Cristo).
Existem muitos outros detalhes que valeriam a pena uma exposição mais detalhada: o caráter eminentemente aristocrático - no mau sentido - de todas as revoluções, nas quais os homens comuns eram obrigados a lutar e morrer pelos interesses das elites políticas; os contornos bizarramente gnósticos assumidos pelo culto americano à liberdade, dando origem ao estranho fenômeno de um secularismo religioso (rituais litúrgicos ao redor da "árvore da liberdade", o "poste da liberdade"; consagração de prédios públicos por ritos maçônicos; leis praticamente prescrevendo adoração à bandeira americana; e o próprio tratamento semi-religioso concedido aos Founding Fathers e outros personagens da historiografia americana, com direito a mausoléu, orações e até veneração de relíquias).

Entretanto, como o texto já está grande demais, vai ter que ficar pra próxima. 
Mas, para concluir, a lição que Ferrara nos deixa é bem simples: longe de uma nação conservadora, os EUA são fruto de um projeto ideológico revolucionário abertamente anticatólico e laicista, cujo resultado final foi a substituição do Reinado Social de Nosso Senhor Jesus Cristo pelo despotismo republicano e democrático da deusa Liberdade, cujos representantes na Terra são presidentes incomparavelmente mais poderosos e autoritários que quaisquer reis medievais.
Liberdade, como nos mostra Ferrara, é uma deusa ciumenta que, alimentando-se, a princípio, da histeria "antipapista" anglo-saxônica, convenceu gerações inteiras a lhe prestar adoração - não raramente, de formas ironicamente muito próximas aos ritos e práticas da "Igreja Romana" que Liberdade tanto odiava.

Mas, depois de milhões de vidas inocentes destruídas pelo "direito ao aborto", de milhões de famílias destruídas pela degradação moral, e de multidões de almas condenadas ao inferno em nome da "liberdade de consciência e de expressão", resta-nos apenas reconhecer que Liberdade é uma deusa que falhou - e, a menos que recoloquemos Trono e Altar divinos no lugar de onde nunca deveriam ter sido retirados, nosso destino será afundar, presos ao corpo sem vida dessa deusa infernal, em direção a um abismo sem fundo - o abismo de onde Liberdade veio.

Um comentário:

  1. Muito boa a resenha. Ferrara é um autor que faz muita falta não ter sido ainda traduzido.

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